Saturday 17 November 2012

Martinho, o santo

A chuva fina entranha-se em todas as formas vivas e inanimadas, não há pano nem pele nem pelo que resista ao aconchego glaciar desta molinha. Pessoas e bichos vão-se arrastando encolhidos nas ruas lamacentas fazendo os possíveis para não se deixarem apodrecer de frio e humidade.
Bem parecido, trinta e poucos anos, montado no seu grande cavalo de batalha, avança altivo o valoroso Martinho por entre a populaça sob esta manhã excomungada de novembro.
Capacete de bronze, túnica de linho botas de couro e um manto de pêlo de urso, rubro como beterrabas descascadas.
Por entre estes escombros de gente há um mendigo que lhe surge enrolado nas patas do corcel.
- Que fazes velho? Não vês que te passo por cima?
- Uma esmola meu senhor para este velho sem casa e sem familia...
- Estás quase nu. Como é que ainda não te foste desta para melhor?
Reflectindo perante a nulidade daquela condição de ser, desceu do cavalo, desembainhou a espada, revirou os olhos e
"Ui que me vai cortar ao meio", pensou o mendigo
e cortou em dois o seu manto das beterrabas, aconchegando de seguida o velho com uma das metades.
- Tenho de ir, disse Martinho. Passe bem...
- Mil obrigados, abençoado seja mais os seus filhos e netos mais as dez gerações que se seguirem.
Não tinha avançado dez metros quando o céu brusco e molhado se rasgou também em dois dando passagem a uma claridade solar imensa e aconchegante, um pequeno verão como passara a ser chamado desde então. O romano parou a marcha espantado, olhou para trás, onde o velho se estava a espreguiçar que nem um gato ronronante sorrindo aos raios de sol.
- Bolas de Júpiter, tivesse eu consultado o windguru antes de sair de casa e não tinha destruído uma capa acabada de comprar.
Dessa manhã em diante, ele decidiu que deixaria as fileiras militares para dedicar-se à meteorologia.

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