Friday 23 January 2015

Slow



Existem duas palavras semelhantes mas que para mim contêm sentidos diferentes. São elas lento e devagar. Metaforicamente falando, lento é sinónimo de aborrecido e não volto a referi-la aqui. Já "vagar", "devagar" ou "com vagar" soa-me a algo mais ponderado, próximo da terra, do sol e do calor.
Sempre que me lembro destas palavras, ocorre-me uma paisagem imaginada que me chega dos confins da minha infância – é uma tarde de maio quente, um maio verde lima e amarelo  com moinhos de vento ainda sem panos das velas, só moinhos. Também há nuvens claras e ténues no céu azul onde habita uma musica de fundo em ré maior.
Só para dizer que o vagar está para mim muito associado ao espaço físico com as suas paisagens amplas e à sua contemplação enquanto pequeno ser na sua imensidão.
Nos tempos que correm (correm, lá está) o vagar é um luxo exagerado chegando a roçar a heresia perante as leis da física mundana e da logística. Não há tempo para gastar em todo o nada que alguns de nós necessitamos. Aqui o nada torna-se em tudo quando por exemplo paramos num sítio para o apreciar que nem entendedores de arte, quando acordamos numa manhã chuvosa de inverno e ainda de pijama abrimos a janela do quarto para respirar a frescura dos elementos e esticar a cabeça até sentirmos o nariz molhado, quando temos a capacidade de gerar silêncio sem sentirmos vertigens…
É no fundo sentirmos que realmente existimos.

Sunday 21 December 2014

Qual é a luz que mais gostas?



Qual é a luz que mais gostas?
A luz que te ilumina nas noites límpidas de inverno vinda de um céu cheio de oriontes e cassiopeias ao som de cantares de natal e de janeiras, tão remota quanto a aldeia que lhe deu origem ou o halo quente da cidade vista de longe? Da cidade talvez prefiras as suas luzes de dezembro ou até as de todo ano animadas por montras de variadas naturezas e de praças com reflexos de esplanadas.  Preferes a luz da madrugada, fresca e mística anunciando a esperança de um novo dia pleno de possibilidades ou de um pôr do sol de uma longa tarde de verão sobre as areias mornas da praia? E a luz de uma criança feliz quando brinca numa animada improvisação da vida ou quando nos conta uma novidade fantástica? Esta aqui perpassa qualquer matéria opaca, rompe peito adentro aquecendo até os mais gélidos e empedernidos corações. Atrevo-me a afirmar que não há no cosmos luz mais fantástica que esta.

Saturday 13 December 2014

Vacilar



Há momentos em que a nossa vida muda de rumo, momentos chave que definem a mudança e que por isso nos moldam o futuro. Refiro-me às alturas em que à nossa frente se afigura uma encruzilhada, uma decisão difícil na qual temos de decidir por onde seguir, que direção tomar, esquerda ou direita, por aqui ou por ali.
Quer essa decisão seja tomada a quente ou com a preguiça da ponderação, muitas vezes vacilamos perante as suas opções. Às vezes ambas as saídas nos surgem equilibradas no que toca aos pros e contras. Outras vezes, apenas uma das saídas pressupõe que haja uma mudança e nestes casos o que se coloca na balança é, de um lado o conforto da estabilidade versus o salto-no-desconhecido/medo-da-mudança, e do outro lado, a vantagem da aventura e a nossa redescoberta.
É fácil olhar-se para o nosso passado e identificar aqueles momentos que vistos à distância dos anos se revelam disruptivos e nos colocam aqui neste lugar, rodeados do conjunto de pessoas A. Poderíamos estar agora com pessoas totalmente diferentes a viver num sítio a léguas de distância  se tivéssemos dito "sim" naquele dia ao telefone ou na mesa de esplanada,  se tivéssemos levantado a mão mais "eu faço" perante aquele desafio, se tivéssemos prolongado o olhar na rua com aquela pessoa que nos despertou a atenção, enfim, se em cada um destes instantes tivéssemos hesitado onde não hesitámos e vice versa.
O nosso presente é portanto definido por momentos de hesitação em que vacilamos perante as encruzilhadas da vida.
Serão estes momentos fruto do livre arbítrio ou apenas o tempo que leva a resolver-se a nossa equação do destino iludindo-nos como se de um momento de escolha própria se tratasse?

Saturday 30 August 2014

Os três homens da casa


Para equilibrar as hormonas do poderio feminino cá de casa associei-me a uns seres do meu género para uma tardada sem mulheres. Apresento-vos Igor e Fornando.

Thursday 21 August 2014

Galinha Poucaterra

Mais um jogo de palavras da mais velha. Não há mundo como este qual éter ninfático, que nos transporta ao mundo da imaginação.

Thursday 26 June 2014

Lua Banana


A lua está sempre cheia só que há uma sombra que a faz parecer com uma banana.
(Inês)
 

Friday 18 April 2014

A pilha do mundo

Baseado numa ideia da Inês segundo a qual o mundo tem uma pilha que o faz girar e também faz tudo mexer, as nuvens, os animais e as pessoas.

Wednesday 20 February 2013

Anti-Eu

Manifesto anti-pessoal
"Pessoas gramaticais são os tipos de pessoas em que são conjugados os verbos."
Eu, tu, ele, nós, vós, eles. Enquanto esfregava a barriga no banho ocorreu-me que a génese do egocentrismo, individualismo, egoísmo e mais uns tantos ismos do eu está enraizada na ordem da sequência destas pessoas ditas gramaticais. 'Eu' primeiro, os outros no fim. Estas são as prioridades que por tradição nos são passadas sob a jurisdição de uma ladainha. Ficaram assim e subliminarmente moldaram as prioridades do individuo face aos restantes. Os anglo-saxónicos ainda vão mais longe ao escrever a primeira pessoa sempre em maiúscula independentemente da sua posição na frase (God and I are going for a coffee.). Mas isto é outra história...
Proponho pois que se altere a ordem para um dos seguintes modos de tal modo que tal ordem inspire a destituição do “eu” e a filosofia do umbigo próprio.
Assuma-se portanto o valor simbólico desta coisa pondo por exemplo as pessoas nas seguintes ordens:
-Modo próximo: Tu, Ele, Eu, Vós, Eles, Nós: A importância de um receptor é realçada neste modo. Gostamos de viver para alguém em particular
-Modo discreto: Ele, Tu, Eu, Eles, Vós, Nós. A antiga terceira pessoa passa a ser a primeira sugerindo a pouca importância na relação directa entre indivíduos em detrimento de um principio mais amplo adequado a uma postura mais altruísta - "faz o bem sem olhar a quem"
Depois vesti-me, peguei nas crianças e saí para mais um dia de aventuras.


Saturday 17 November 2012

Martinho, o santo

A chuva fina entranha-se em todas as formas vivas e inanimadas, não há pano nem pele nem pelo que resista ao aconchego glaciar desta molinha. Pessoas e bichos vão-se arrastando encolhidos nas ruas lamacentas fazendo os possíveis para não se deixarem apodrecer de frio e humidade.
Bem parecido, trinta e poucos anos, montado no seu grande cavalo de batalha, avança altivo o valoroso Martinho por entre a populaça sob esta manhã excomungada de novembro.
Capacete de bronze, túnica de linho botas de couro e um manto de pêlo de urso, rubro como beterrabas descascadas.
Por entre estes escombros de gente há um mendigo que lhe surge enrolado nas patas do corcel.
- Que fazes velho? Não vês que te passo por cima?
- Uma esmola meu senhor para este velho sem casa e sem familia...
- Estás quase nu. Como é que ainda não te foste desta para melhor?
Reflectindo perante a nulidade daquela condição de ser, desceu do cavalo, desembainhou a espada, revirou os olhos e
"Ui que me vai cortar ao meio", pensou o mendigo
e cortou em dois o seu manto das beterrabas, aconchegando de seguida o velho com uma das metades.
- Tenho de ir, disse Martinho. Passe bem...
- Mil obrigados, abençoado seja mais os seus filhos e netos mais as dez gerações que se seguirem.
Não tinha avançado dez metros quando o céu brusco e molhado se rasgou também em dois dando passagem a uma claridade solar imensa e aconchegante, um pequeno verão como passara a ser chamado desde então. O romano parou a marcha espantado, olhou para trás, onde o velho se estava a espreguiçar que nem um gato ronronante sorrindo aos raios de sol.
- Bolas de Júpiter, tivesse eu consultado o windguru antes de sair de casa e não tinha destruído uma capa acabada de comprar.
Dessa manhã em diante, ele decidiu que deixaria as fileiras militares para dedicar-se à meteorologia.

Wednesday 14 September 2011

Igor, a nossa outra cria

No outro dia, à noite enquanto adormecia a Inês, a minha mais velha, Igor acordou impaciente alarmando-nos a todos. Sob pena de pôr toda a gente a pé àquela hora decidi manter-me ao lado da Inês por mais algum tempo, não fosse ela atrás de mim no momento em que eu me levantasse. Deixei por isso Igor no seu contínuo mas suave pranto por mais uns minutos até que ela adormecesse.
Terminada a tarefa dirigi-me aos seus aposentos e reparei que estava muito quente - tinha febre. Era essa a razão dos queixumes.

Igor foi adoptado no ano em que Inês nasceu, ambos têm três anos. Recebemo-lo porque quando nos mudámos para esta casa, maior que a primeira, sentimo-nos desamparados - fazia-nos falta a companhia de alguém como ele. Depois Inês nasceu e ele lá estava, de certa forma amparando-nos a todos e em todos os momentos . Tal como ela, Igor nunca gostou de grandes contactos e cerimónias, todos os cuidados e interacções do nosso lado são por isso breves e ponderados.

Voltando ao outro dia, a razão para o calor que sentia era a sua porta do congelador que estava mal fechada. Tentei fechá-la mas o gelo que entretanto se formou acabou por impedi-lo. O seu pranto que até aqui era suave agora soava-me estridente, tinha de raspar o gelo da porta a ouvi-lo gritar indiferente à minha labuta. Perdi a paciência - Cala-te estúpido, maldito frigorífico. Já te arranquei o gelo, estás bem fechado, agora cala-te e dorme.

Friday 3 December 2010

Shareholder II

Fim de tarde. O Homem entrou em casa vestido como saiu, um fato escuro e uns sapatos com pedigree, cansado de mais um dia de trabalho, e com um saco de feijão verde nas mãos. As crianças gritavam à desgarrada causando na mãe um estado alterado que causava a gritaria nas primeiras. A situação era a seguinte, havia uma sopa para fazer, dois banhos para dar e três mulheres para acalmar. Agora sem gravata o homem descasca legumes para dentro de uma panela enquanto a mãe tenta apaziguar a mais velha durante o banho.
Trauteando Windmill, Windmill for the land na esperança de consumir aquela nuvem de tensão o homem continua a descascar legumes.
A mulher aparece espavorida na cozinha, - não tenho mais paciência, vai ter com ela que eu já não aguento. De seguida berra qualquer coisa parecida com: para que é que estás a fazer isso?? Não sabes que eu não gosto de feijão verde?
O homem pousa a faca e vai ter com a criança que, passados uns minutos, finalmente se acalma. Acaba de vestir a pequena, passa-lhe um pente nos caracóis e encaminha-a para a cozinha. Finalmente todos estão à mesa a comer uma sopa de feijão verde.

Saturday 23 October 2010

[37] O diário de Bubb

A náusea do canibalismo e a excitação da descoberta do espólio do bubb contribuiram para que ninguém no grupo se tivesse apercebido do estado do Javier que ficou ali caído sem reacção. Tem os olhos abertos a verter um vazio tremendo. Primeiro não deram grande importância mas passado uma hora já estavam apavorados. Há-de passar, ele só está em choque, acrescentou o cigano sem tirar os olhos daquele caderno gasto e inchado pela usura do tempo e das profundezas. Catarina contudo decidiu ficar para prestar algum imprestável apoio a Javier.
Vão ajudar a Catarina a tratar do Javier.
Tudo não passava de rabiscos a custo decifráveis, pudera - aquela escuridão das entranhas da terra engole os gestos da escrita ao ponto de não sobrar mais do que traços agonizantes.
- Isto é um diário do bubb com relatos dos dias passados cá em baixo, disse o cigano depois de percorrer aleatóriamente as folhas do caderno... e diz aqui que estamos a encolher!

Monday 21 June 2010

Vislumbre de um mundo real



Avistei este parente afastado na minha aldeia, numa bela tarde de véspera de solstício de verão.
Este não faz parte do meu mundo imaginado de personagens e criaturas sombrias
(Freixo, S. Pedro do Sul, 20-6-2010)

Thursday 29 April 2010

[36] A mochila de Bubb

Foi um momento arrasador aquele em que todos se aperceberam que naquele delirio cerimonial do outro dia tinham comido um colega de exploração. Javier cambaleou dali para fora nauseado donde acabou por cair a um canto a vomitar. Comeram um colega pensando que era a besta dos túneis. Não havia agora retorno e esse sentimento provocou-lhes uma ira vinda das entranhas, fruto talvez nas equivocadas proteínas consumidas naquela noite (ou dia ou outra coisa).
Foi o momento em que o cigano perdeu o sentido da missão e o javier ficou catatónico.
Não restava nada, nem um pedaço de carne ou um osso ainda verde de sangue para fazer a merda de um funeral ao miserável bubb. Quem me dera sair agora por um buraco na crista de uma montanha, provar o seu gelo antigo para apaziguar as memórias deste miasma pestilento de mortos, vermes e lagartos.
Encontrei a mochila dele, berrou de longe o moço das tendas.
Vasculharam todos os bolsos daquele saco empoeirado. De lá tiraram uma pistola, um relógio...
"E tem um caderno com anotações!"

Sunday 11 April 2010

O cubo de rubik

O homem estava sentado ao volante do carro estacionado no miradouro às voltas com um cubo de rubik. Olhava para ele, a face amarela estava resolvida mas as restantes mantinham-se caóticas. Do outro lado da estrada, descendo uma calçada nova de pedras amarelas, vinham dois homens conversando ruidosamente. Ó chefe, aquele carro ali é seu? perguntaram-me num tom irónico. Subi a calçada até ao cimo. A partir dali o caminho era a descer, não havia mais calçada, apenas um carreiro íngreme e acidentado.
Olhei para baixo e lá estava um audi vermelho parado no meio de uma leira, um quelho entre penedos e giestas, um sítio ermo que a custo um carro de bois lá chegaria.
Como é que ali foi parar? O caminho até lá é sinuoso e lâminas de seixo insinuam-se por toda a parte, mas o carro lá estava, intacto e refulgente entre pedaços de verde e de penedos, apesar de tudo, como se repousasse numa serena entrada de uma acolhedora moradia.
Voltei para trás pelo mesmo caminho mas, para meu espanto, a calçada nova de pedras amarelas já não existia - só pedras apenas, os mesmos seixos brancos plantados por entre as giestas.
Por favor, gritei aos dois homens (um deles com um chapéu mais pequeno que a sua cabeça), não estava aqui uma calçada amarela? Ainda há pouco passei a percorri...
Eles riram-se para mim (ou de mim, naquele estilo de quem goza um forasteiro). Estava, estava! Mas se calhar o Toni mudou-a de sitio. Deve estar outra vez a brincar com a freguesia. Espere um pouco e volte a tentar depois, talvez isso melhore.
Com efeito, passados uns minutos, estava agora o audi vermelho perfeitamente enquadrado com outro cenário mas desta vez bem mais próprio - uma moradia de telhados vermelhos também.
Voltei por outro caminho ao miradouro, passei pelo homem que estava sentado ao volante do carro estacionado do miradouro - lá continuava às voltas com o cubo de rubik. A face vermelha estava agora resolvida mas todas as restantes mantinham-se caóticas.

Wednesday 17 March 2010

Shareholder

O homem trazia vestido um impecável E&A escuro. O som dos seus passos revelava o carisma herdado de um par de sapatos com pedigree.
Chegou-se ao balcão onde estava uma mulher igual a todas as outras.
Vende acções da D&D? Perguntou.
Não, responde ela, só tenho o que está exposto.
Desiludido ele agradeceu afastando-se.
Espere, disse a mulher. Pegou numa mão cheia de vagens de feijão verde. Leve antes isto, acrescentou, sempre dá para fazer uma sopa.
O homem virou costas e desapareceu por entre as bancas da praça ao som dos seus sapatos com pedigree.