Friday, 20 June 2008

[16] A partida de Javier para a alienação



Mãe pai,
Saí, desertei.
Calculo que vos surpreenda com esta notícia e também que tal decisão vos cause sofrimento. Contudo nada tenho a denunciar no que respeita às vossas responsabilidades de pais e protectores. Devo até confessar que fui privilegiado na minha vida e carreira e por isso fico-vos grato pelo potencial de oportunidade que me providenciaram.
Saio por razões irracionais do ponto de vista dos valores vigentes nesta sociedade.
Não me sinto seguro nesta vida que de resto acaba por ser igual à de todos os outros. Sinto-me cansado e, pior ainda, usado por toda esta máquina global e capitalista frenética.

Estou portanto de saída para um outro mundo neste mundo, para começar, para um sítio onde não sinta a fadiga dos dias rápidos e a desmesura do consumo. Procuro o deserto onde não chegam os miasmas urbanos mais as desgraças fúteis trazidas pelas ondas electromagnéticas. Sinto-me sujo e usado e preciso de me purificar no desterro, no vazio tranquilo das remotas planícies.
Voltarei depois à urbe, independente, autónomo e liberto e sempre de passagem, sempre em movimento. Sondarei todos os trilhos do planeta procurando outras formas de viver, serei irónico o suficiente para usufruir do mundo sem que este me use, não serei informação digital nem um joguete ao sabor das tendências seguidistas. Serei sempre um copo vazio pois a expectativa de o poder encher é infinitamente mais gratificante do que o ter já cheio com com coisa nenhuma.
Neste mundo de onde parto acabamos sempre por nos afeiçoarmos às coisas que adquirimos, viciamos a vida e a alma com isto, vivemos de projectos menores, planeamos adquirir coisas, vivemos de acordo com um calendário comercial no qual temos sempre de cumprir com as nossas obrigações da época, comprando ovos, corações, bandeiras, chapéus de bruxa, prendinhas, cornos do demo, qual apostolado de um leigo praticante, tentando aplacar a ira divina com o seu rol de romarias, alinhamos em carneiradas futebolísticas, multidões sedentas de multidões, sonâmbulos que se arrastam para o ruído, telemóveis, LCDs, DVDs, serviços de chá, carro, casa, a vida dos outros - queremos ser como eles - aqueles que aparecem na tv, churrasco ao domingo, receitas de tristeza e alegria ditadas pela televisão e exemplarmente executadas pelos crentes, nós ovelhas nós carneiros.
Preciso de me distanciar disto por uns tempos. Esta vida consome-me. Trabalho, realização profissional para poder suportar um estilo de vida que mais não é do que um carrocel estúpido, sempre às voltas no mesmo lugar comum. O que ganho e o que obtenho com tal esforço servirá para mais um bilhete, para mais uma volta, enfim, para lá andar. Se não me sinto bem com tal modelo, também não vou precisar de o sustentar. Largarei tudo isto e vou finalmente pousar em solo firme, primeiro recuperarei das náuseas desta vida que se impõe sempre circular. Depois, escolher caminho e avançar.
Fujo disto porque, mesmo consciente deste abuso, não estou preparado para o enfrentar aqui.

Até breve

Ass: Javier

My father is a rich man
He wears a rich man's cloak

Gave me the keys to his kingdom coming

Gave me a cup of gold

He said I have many mansions

And there are many rooms to see

But I left by the back door
And I threw away the key

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